quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A AVÓ ISABEL

Quando eu era piquinino
Nos tempo da minha Avó (Isabel...)
Minha vida tinha coisa
Que agora já de acabou

A casa da Avó Isabel tinha um pátio interior...
A casa da Avó Isabel... e o cão Piloto

    Destacava-se a casa da costura... A Avó Isabel era modista. A única que havia. Procurada por gente de todas as classes sociais. Desde a prima Nogueira uma velhinha madeirense, que sempre conheci velha e encarquilhada... (eu acho que ela já nasceu velha...), que tinha poderes e sabedoria para nos acudir em casos de resolução complicada. Uma espinhela caída... um bucho virado... um entorse. "Carmo quebrado, aberto, desconjuntado..." rezava ela com um raminho de alecrim a aspergir azeite sobre a articulação maltratada (eu era um habitual cliente...). Até a D. Hendrina, uma senhora imponente, de origem sul-africana, tinha pela minha Avó  uma estima muito especial, passando pela classe média, gente da mais diversa proveniência social. Todos iam ter com a Avó... para subir uma baínha... rematar um carcela, chulear uma cava... casear uma casa de botão. E havia as meninas que iam aprender costura. "Ajudantas"... como se dizia! Havia uma de que me recordo particularmente: A Lurdes Costa, pelas historinhas de encantar que nos contava.

    Da casa de costura passava-se para o tal pátio interior - o quintal. Mas antes atravessava-se a "casa das flores". Um espaço onde a Avó tratava das suas plantas. Um telhado de telha vã. À volta uma cerca de madeira. E mil e uma plantas, magnificas. Chuva de Prata... Hortenses... Gladíolos... Lírios. Plantadas em celhas - meios barrís que haviam servido para armazenar vinho, que o Avô João, de seu nome, Sargento do Exército, um porte marcial, a condizer com o seu bigode negro e farto, trazia do quartel. O Avô João faleceu era eu um gaiato. Tenho a imagem dele envolta numa névoa...

    Ao lado, à esquerda do pátio, havia a dispensa. Era uma divisão ampla, de chão de terra batida, cheia de coisas misteriosas... Serras de cortar madeira, enormes, comparadas com o meu tamanho reduzido... Alfaias agrícolas . Uma masseira feita de um tronco gigantesco escavado, onde a Avó amassava um pão magnífico, a que acrescentava uma boa dose de batata doce cozida (à moda da Madeira, terra dos seus pais), que transmitia ao pão um sabor muito peculiar e fazia com que o pão durasse mais tempo. Depois havia um pisão, também feito de um tronco escavado, onde, com um pau luzidio do uso, se reduzia a farinha. o milho e o trigo, em movimentos sincopados, de cima para baixo. E mais... Se transformava em pó o café colhido no "outro lado" (do ribeiro) e torrado numa panelona de ferro fundido de três pés, debaixo da qual se acendia uma fogueira. Esta operação enchia o ar de um intenso cheiro a café.

    Era nesta divisão - a dispensa - que se pendurava e esquartejava o porco... momento de alta intensidade, aguardado por todos com ansiedade. O chouriço... a morcela... os torresmos.... e... e.... os "caezinhos". Os rins do porco que a Avó, sabiamente,também transformava em torresmos e que faziam as delícias dos netos. 
Ao lado da dispensa e sempre com a porta para o pátio, havia a cozinha, com um imenso fogão lenha. Um fumeiro para curar os chouriços e as morcelas. E um forno, onde se cozia o pão... semanalmente e em vésperas de Natal se assava o leitão, com recheio de arroz, sangue e miudezas e uma batata na boca. E também um pão de Natal... com sabor a erva-doce e canela, E muitos, muitos ovos... Esse foi um segredo que a Avó Isabel levou com ela. 

    Nessa cozinha havia uma hierarquia: A Avó Isabel, a tia Belita - A Bel para a Avó - e logo a seguir o Manuel Gunga um cozinheiro alto e imponente que nos amedrontava com a sua voz de trovão.

    Mesmo em frente à cozinha, do outro lado do quintal, havia a casa de jantar. Uma divisão grande, com dois armários muito antigos, os louceiros, onde se guardava a louça que servia na grande festa de Natal... a familia toda reunida à volta da grande mesa, tão grande que eu e o Vitinho - meu primo - a utilizávamos como mesa de "ping-pong". A Avó, a matriarca, na cabeceira, depois por ordem hierárquica, estabelecida pelo grau de parentesco, a restante família. As crianças, eu incluído, ficavam numa outra mesa. Quando se atingia um estatuto que o permitisse, passava-se para a mesa principal. Eu acho que nunca tive esse privilégio...
E na parede sempre omnipresente, no seu poleiro, o papagaio Jacó. 

    O Jacó viveu mais de 50 anos. Morreu de frio, de velhice e certamente de saudade, quando trouxeram para a Europa em pleno Inverno... Tinha uma faculdade - se é que se pode assim chamar! O Jacó "falava" ! Imitava na perfeição a voz das pessoas com quem convivia mais de perto: "Senhora, olha o Jacó!", palrava ele quando a Avó passava. Foram também essas as últimas palavras que o Jacó pronunciou para a minha mãe, que o "herdou", quando morreu numa tarde sombria e gélida, de Inverno...

    ...Mas também era naquele pátio, que em noites de São João se fazia a fogueira. A fogueira de São João! Em devoção ao Santo e principalmente em memória e homenagem ao Tio João. Filho mais velho da Avó. Eu já não conheci o Tio João. Lembro-me dele através das fotografias que me chegaram às mãos.

    Morreu novo o Tio João. Casou com a tia Gaby. Morreu de uma doença  contraída nas suas andanças pelo sertão africano. A "bilharziose" e deixou na Avó, uma mágoa e uma saudade imensa...

    A fogueira era acesa ao por-do-sol. Com rigor absoluto. O sol ia descendo a caminho do ocaso e todos, à volta do madeiro, aguardando pelo momento em que ele desaparecia atrás da linha do horizonte, por detrás da serra, lá para os lados da Senhora do Monte. Então cumpria-se a tradição e o ritual. A chama irrompia. E assim ficava até altas horas da noite. O jantar era servido à volta do fogaréu... 

    Havia algo de mágico e irreal nessa noite... Talvez o espírito do Tio João, sobrevoasse aquela chama...
No outro dia de manhã, antes do nascer do sol, a Avó Isabel levantava-se e tinha um ritual mágico a cumprir: ia colocar nas janelas, raminhos de alecrim e oliveira, benzidos no Domingo de Ramos, que mais tarde usava para afastar as trovoadas. Enquanto a casa se enchia do perfume do alecrim queimado no brasido ela rezava: "Santa Bárbara, Santos Fortes... Santa Mãe, miserere nóbis!"

    E ia apressada, antes que o sol rompesse, espreitar a fonte.  Se conseguisse ver o seu rosto reflectido nas águas, tranquilamente nos dizia: "Filhos, este ano a Avó vai estar viva.".
    A Avó Isabel morreu no ano em que, levantando-se de madrugada, no dia de São João, espreitou na fonte e não se reviu nas águas...

4 comentários:

Anónimo disse...

Lugar mistico e mágico a casa da tua avó!
Com ums discrição tão perfeita, consigo imaginá-la...
Uma medalha de ouro para as tuas recordações de infância, nem todos são tão afortunados como tu, há quem não tenha nada de bonito para recordar...

Anixa

Anónimo disse...

Esqueci-me de acrescentar que agora, definitivamente percebi de onde vem tanta sabedoria e amor pelas plantas...o neto da Avó Isabel tinha de certo que ser, o Jardineiro do Rei..)))

Anixa

Majo disse...

Recordações amororosas e muito interessantes. "Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso."
Já leste Luís Sepulveda? É um contista de mérito, mas os teus contos não têm menos qualidade do que os dele. Se não o conheces, lê-o. Vale a pena e poderá motivar-te para escreveres algumas obras.
Seria uma boa ajuda para a tua reforma. Desejo-te o maior sucesso.

Majo disse...

Voltei à casa da tua saudosa avó Isabel... É um sítio cheio de magia onde viveram seres que muito se queriam.

A casa da grande matriarca muito respeitada e amada, descrita com muita ternura pelo neto que a mantém viva no seu coração.

Tão precisas são as tuas recordações que proporcionam ao leitor, vivenciá-las!

Amigo, jamais esqueças de agradecer por teres sido abençoado com uma familia tão bonita...