terça-feira, 22 de novembro de 2016

MALDITA COCAÍNA OU... COCA A PLANTA SAGRADA.

Planta da Coca
   Consumidas há milhares de anos  pelos povos da América do Sul, as folhas do arbusto que dá pelo nome científico de Erythroxylum coca, vulgarmente Coca, poucos danos causaram aos consumidores até ao dia em que o mundo descobriu como extrair delas a Cocaína. A partir daí nada mais foi como dantes. Nem para os povos da região andina, nem sequer para os entusiastas consumidores ocidentais.
   Os Incas, ancestrais habitantes do planalto andino,   usavam há perto de 2000 anos a folha de Coca, quase exclusivamente em rituais sagrados. Isso era privilégio dos nobres, do "Uíllac Umu", o Feiticeiro-que-Fala, o Adivinho e dos Sacerdotes.    As folhas de Coca exerciam um efeito extraordinário sobre as pessoas que as consumiam. Em poucos minutos, estavam eufóricas, enérgicas e imbuídas de uma fantástica sensação efémera de bem estar. Talvez se pudesse dizer que se embriagavam de folhas de Coca e, de certo modo, é assim, já que o seu efeito sobre o cérebro é muito semelhante ao do consumo do alcool. Com isto se criava o ambiente propício à prática de rituais de cura, magia e adivinhação.
Um Chasqui
   A chave para controlar e gerir o vasto império Inca, cujo centro nevrálgico era a cidade de Cuzco edificada nos Andes, a perto de 4 mil metros de altitude,  era um eficiente sistema de comunicações. Isso era conseguido graças aos "Chasquis", os mensageiros, uma espécie de carteiros da época, que faziam chegar eficazmente aos mais recônditos lugares, as mensagens urgentes. Eles eram os únicos homens do povo que podiam consumir folhas de Coca para obterem um efeito anorexiante ou seja, supressor da fome e para suportarem a sede e o cansaço. Estes homens estavam tão dependentes do consumo das folhas de Coca que as distâncias não se mediam em quilómetros mas em "cocadas"  o mesmo é dizer, a quantidade de folhas de Coca necessárias para percorrer uma determinada distância. Este estimulante permitia aos "chasquis" percorrerem grandes distâncias, transportando, numa espécie de mochila tecida em lã de "Vicuña", um mamífero semelhante ao Lhama, chamada "churpa",  uma carga igual ao próprio peso corporal do mensageiro, em pouco tempo, consumindo, como único alimento, uma pequena malga de papa feita com folhas de Coca, guardadas num pequeno saco a que davam o nome de "qipi". Este "alimento" permitia-lhes caminhar nas grandes altitudes andinas, em ambiente de oxigénio rarefeito, sem grande esforço.
   Durante milhares de anos foi assim. Contudo um acontecimento iria determinar, dramáticamente, o fim do conceito, quase sagrado, da utilização cerimonial da Coca. Foi a chegada dos missionários espanhois e dos traficantes de escravos. Os primeiros, tudo tentaram para fazer crer aos povos destas regiões que o consumo de folhas de Coca era uma prática demoníaca. Essa missão foi boicotada pelos traficantes, quando descobriram que podiam poupar dinheiro em alimentos se forçassem  os escravos a consumirem cada vez mais folhas de Coca, cuja planta crescia livremente na natureza. 
   À época, as grandes reservas mundiais conhecidas de prata situavam-se na América do Sul. Nessas minas foram forçados a trabalhar, em condições desumanas, homens, mulheres e crianças, alimentados quase que exclusivamente a folhas de Coca. Desgraçadamente, estas folhas, que outrora eram privilégio das elites, agora tornavam-se acessíveis à classe mais baixa dos povos andinos, passando, paradoxalmente, a contribuir para o seu definhamento e morte.  Só na década de 1620 morreram nas explorações mineiras mais de meio milhão de mineiros indígenas.
   Como seria de esperar, o hábito de consumo de folha de Coca, chegou rápidamente ao mundo Ocidental. Primeiro, os grandes proprietários, receptadores  dos escravos, que aprenderam que com folhas de Coca podiam poupar na alimentação dos seus trabalhadores, mantendo o mesmo ritmo de trabalho. Mais tarde, a alta sociedade também quis experimentar as delicias de uma nova aventura.
   Em 1855 Albert Niemann comunicou ao mundo científico da época que havia conseguido extrair da folha de Coca algo a que chamou "Cocaína", que exercia um efeito extraordinário sobre quem a ingerisse. Esta descoberta foi a porta que se abriu, definitivamente, para a introdução da Cocaína na vida quotidiana de ociosos endinheirados.
   Em 1863 o Químico italiano Angelo Mariani criou e começou a produzir comercialmente uma bebida feita à base de folhas de Coca a que deu o sugestivo nome de Vinho Mariani. Os efeitos desta beberagem eram potenciados pela presença de ácool etílico e Cocaína, actuando como estimulador do sistema nervoso central, muito parecido com o efeito produzido pelo consumo de Cocaína pura. Eram-lhe atribuidas diversas propriedades medicinais e até os papas Pio X e Leão XIII foram consumidores convictos, tendo mesmo este último atribuído uma medalha honorífica a Angelo Mariani e consentido que a sua imagem ficasse associada à publicidade da marca.
Vinho de Coca Maltine
   As grandes empresas da época deixaram-se levar por esta nova onda, como por exemplo a Maltine Manufacturing Company, que produzia o Vinho de Coca Maltine. 
   Mas não foi só a industria europeia da época a produzir bebidas à base de folhas de Coca.  A The Coca-Cola Company, com sede em Atlanta, nos Estados Unidos, produziu e comercializou uma bebida, inicialmente para fins terapeuticos. Tudo começou quando o farmaceutico John Pemberton, de Atlanta, decidiu criar o seu próprio vinho de Coca. Para tanto deixou folhas de Coca a macerar em vinho tinto de qualidade durante 6 meses. Foi um exito absoluto! Quando  as bebidas alcoólicas foram proibídas dos Estados Unidos, ele apresentou um sucedânio sem alcool, elaborado com numerosos ingredientes, entre os quais, Cocaína e Cafeína de noz de Cola. 
   Até o obeso Marechal alemão Hermann Goering comandante da Luftwaffe, a força aérea alemã, mascava folhas de Coca numa tentativa, falhada, para emagrecer.
Comprimidos para o tratamento da dor de dentes
 Numerosas personalidades quiseram experimentar os prazeres proporcionados pela droga da moda.  Um deles foi o psicanalista Sigmund Freud. Consumiu-a ele próprio e consta que a prescrevia aos seus pacientes. O oftalmologista Carl Koller (1884) aplicava gotas de Cocaína nos olhos dos pacientes antes de serem operados.
   As práticas de Freud terão levado a industria farmaceutica da época a produzir diversos medicamentos cujo principio activo era a Cocaína, para tramento das mais diversas patologias.
   A comercialização livre da Cocaína acabaria por ser proíbida nos Estados Unidos, por um motivo que teve mais a ver com o ódio racista que se vivia na sociedade americana da época, do que por razões de saúde pública. O argumento foi que os negros enlouquecidos pelo consumo de Cocaína, atacavam as mulheres brancas do Sul.